quarta-feira, 5 de junho de 2019

Amazônia e a Vida na Terra - Ivo Poletto - Jornal Expressão Junho 2019



Texto na íntegra:


A AMAZÔNIA E A VIDA NA TERRA

O planeta Terra está sendo disputado como nunca. Como a lei que comanda os destinos da humanidade determina que os detentores de capital devem crescer sempre, há busca incessante de consumidores. Isso dá no aumento da velocidade da produção, com uso cada vez mais intenso de tecnologias, e num consumismo que beira o absurdo. A lei da obsolescência, por um lado, leva as grandes empresas ofertarem produtos que devem ser substituídos em prazos cada vez menores, e o marketing, por outro, envolve os consumidores a sentirem-se forçados emocionalmente a estar na moda. O resultado desse processo é o aumento da quantidade de lixo, de mercadorias ainda em condições de uso, criando uma civilização do desperdício.
A outra face desse processo é a busca de bens naturais necessários. O que já caracterizou a colonização de povos e nações desde o século XVI, e de modo especial a que submeteu a África aos países da Europa no século XIX, nas últimas décadas foi mantido através de guerras de diferentes tipos. A última é a da guerra de baixa intensidade, usando os meios possíveis para manter países na órbita de um dos grupos hegemônicos. O confronto mais importante na atualidade se dá entre os Estados Unidos da América do Norte e a China. Como a China vai crescendo seu poder através do uso de seus recursos financeiros, como se percebe, por exemplo, no projeto Rota da Seda e no financiamento de infraestrutura na África e na América do Sul, os Estados Unidos estão fazendo tudo que podem para retomar sua dominação sobre o que sempre considerou seu quintal, as Américas do Sul e Central.
Para esta reflexão, vale destacar que isso significa uma ameaça cada vez maior à vida do e no Planeta. De onde virão os bens naturais necessários para as grandes obras da Rota de Seda e para a expansão comercial que ela provocará? E para que os Estados Unidos mantenham e aprofundem seu império mundial, até mesmo na produção e consumo de mais armas, de onde virão os bens naturais necessários?
É nesse contexto de disputa por bens naturais, considerados recursos indispensáveis pelos que dominam o mercado mundial, que se pode compreender o que está acontecendo na Amazônia. Destacaremos três grupos, cada um com olhar específico.

1. Os caçadores de recursos
São grandes empresas transnacionais e nacionais que colocam em prática o seguinte princípio: se descobrimos mais recursos, devem ser retirados para serem transformados em novos produtos, em nova riqueza. E se já não há ou não são suficientes os retirados em seus territórios de origem, é preciso que os territórios em que há muitos recursos sejam liberados para exploração.
É isso que nos ajuda a compreender o que está acontecendo na África, América do Sul e de modo muito especial, na Amazônia. Os bens naturais preservados pelos povos amazônidas se tornam motivo de cobiça internacional. A água, a floresta, os minérios, a biodiversidade estão no centro da disputa pelos bens naturais que restam.
É impressionante o que está acontecendo nos países da América do Sul: todos estão sendo envolvidos pela proposta de serem exportadores de commodities, de modo especial minérios e produtos agrícolas. E é por isso que a Amazônia está ameaçada pelo crescente número de mineradoras e pelo agronegócio, já que ele se apresenta como necessitado de mais e mais áreas para expandir a produção de carnes e grãos para exportação. Junto com elas e a seu serviço, entram as empresas de produção de hidroeletricidade, de rodovias, de portos, de ferrovias.
O poder dessas empresas cresce na medida em que os governos as promovem como pontas de lança do denominado desenvolvimento nacional. Com todo tipo de incentivos e regalias, sentem-se fortes para impor suas escolhas, e o fazem sem levar em conta a legislação ambiental e os direitos dos povos da região. Na verdade, o governo atual, que ajudaram a eleger, está retirando recursos destinados às políticas de proteção ambiental e apoia a liberação de áreas de preservação, parques nacionais e territórios indígenas aos interesses da mineração.
De toda forma, para garantir seus negócios e demais interesses, o agronegócio e a mineração têm garantido, nas últimas eleições, um número expressivo de parlamentares, com o objetivo de dar legalidade aos seus interesses através da aprovação de leis e mudanças constitucionais.

2. Os defensores da vida
Este grupo é formado pelos povos indígenas da Amazônia. Para eles, a existência da floresta tem a ver com sua própria existência. Na verdade, não só a floresta, mas tudo que a Terra, considerada mãe da vida, criou para seus povos. A água, os rios e córregos, a biodiversidade, o sol, tudo faz parte de sua vida. Ou melhor, eles é que fazem parte dessa vida, que existe muito antes deles.
São povos que convivem porque são parte do conjunto dos seres vivos e de tudo que constitui seu ambiente de vida. É tão profunda essa convivência que toma a forma de respeito pelos espíritos presentes em cada ser. Por isso, o cuidado com todos os seres é base de seu modo de vida. Se precisam de peixes, vão pescar, mas pedem aos espíritos presentes nas águas e nos próprios peixes que os perdoem por agir dessa forma. Da mesma forma, dialogam com os espíritos da floresta e das árvores toda vez que precisam ampliar seu espaço para moradia ou para a formação de roças.
Da mesma forma, cuidam de tudo que constitui o ambiente vital da Amazônia as comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais, cada uma com suas culturas e formas de vida.
O fato é que estes povos vivem neste bioma há milênios sem destruí-lo, como já aconteceu com outros biomas do país. E é por isso que, reagindo às ameaças das grandes empresas, no Brasil e nos países vizinhos, estes povos defendem uma proposta de vida em sociedade que denominam Bem Viver. Trata-se de um sistema de vida fundado em relações de cooperação comunitária entre as pessoas e em relações harmoniosas com tudo que constitui o bioma, o berço vivo e fonte de vida que receberam da Mãe Terra e do Espírito presente em toda a criação.

3. Os que querem controlar e usar os bens comuns
Esse terceiro grupo olha para a Amazônia com um olhar aparentemente “ecológico”. São grupos de capital financeiro que, em nome da preservação do que os povos amazônicos preservaram, e do que foi conquistado com muita luta como áreas e parques de proteção ambiental, se apresentam para assumir a responsabilidade de impedir que sejam destruídos, e para isso negociam contratos de cessão de direitos com povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, bem como com os entes públicos responsáveis pelas áreas de preservação, em troca de dinheiro. Uma vez aceito e assinado o contrato, a gestão destas áreas passa para as mãos do grupo que pagou, e os povos ou o Estado perdem a liberdade de uso de seus territórios.
No caso dos povos amazônicos, deverão organizar a sua vida com o uso dos dólares que receberam. Em outras palavras, passarão para uma economia monetária, comprando no mercado o necessário para sua vida, perdendo sua relação com a vida da qual são parte. Com isso, povos antes distantes do mercado, passarão a ser parte dele.
Por outro lado, tudo que constitui a área preservada e agora cedida ao grupo econômico, passa a ter “valor econômico”. Na verdade, antes da assinatura desses contratos de REDD ou de Pagamento por Serviços Ambientais, já é feita pesquisa para definir o valor econômico desses que até o momento eram bens comuns:  a floresta, a água, os córregos e rios, a biodiversidade, as belas paisagens, a quantidade de carbono que a floresta absorve da atmosfera para sua alimentação...
Esse é o processo final de financeirização da natureza. Sob o controle do capital financeiro, os bens comuns e tudo que eles significam para a existência e reprodução da vida passa a ser parte de um novo mercado especulativo: os “títulos de carbono” passarão a ser negociados em bolsa, ampliando a já absurda especulação financeira que domina a economia mundial.

Conclusão
De fato, a Amazônia é uma das áreas do planeta Terra que está sendo atacada pela disputa por bens naturais por parte das empresas e bancos que desejam manter em expansão a economia capitalista neoliberal de mercado.
Quem já está e pode ser afetado por esse processo de exploração e de financeirização? É claro que os primeiros afetados são os povos indígenas e comunidades tradicionais do bioma. Eles perderão não apenas seus territórios, sua liberdade de relação com os seres vivos que o constituem. Perderão a sua cultura. Morrerão, e essa perda fará falta para a construção de alternativas.
Mas perderá a própria natureza da Amazônia, diminuindo ou perdendo sua capacidade de uma bomba de água que garante chuvas na região e em todo o país, de modo especial no Sudeste e Centro Oeste. Perde o equilíbrio climático criado pela Terra. E como isso aumentará ainda mais rapidamente o aquecimento do Planeta, todos os seres vivos, e em primeiro lugar os humanos, terão dificuldades cada vez maiores para sobreviver. Os seres humanos, criados como inteligência da Terra, comprovarão que, comandados por grupos que se deixaram escravizar pelo desejo de riqueza sem fim, podem tornar-se os destruidores da Casa Comum.
Por isso tudo, e sempre apostando, com esperança, que consigamos mudar de rota, de converter-nos para uma ecologia integral, deve ser saudado como iniciativa muito importante o Sínodo para a Amazônia, convocado pelo Papa Francisco para outubro próximo. Como se sabe pela sua carta encíclica Laudato Si, sobre o Cuidado com a Casa Comum, ele convoca a Igreja de Jesus e a toda a humanidade a rever sua forma de vida, a assumir uma vida mais simples e de convivência com os pobres e com o ambiente vital. Este Sínodo se propõe rever e a redefinir a presença e atuação da Igreja na Amazônia.
Na mesma perspectiva, são muito importantes as iniciativas da Diocese de São José dos Campos para entrar em comunhão com este Sínodo, buscando apoiá-lo e, ao mesmo tempo, assumi-lo como mais uma oportunidade para renovar a sua presença e atuação na região.
            
Ivo Poletto – assessor nacional e membro do Grupo Executivo do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social – FMCJS.

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