Texto na íntegra:
A AMAZÔNIA E A VIDA NA TERRA
O planeta Terra está sendo disputado como nunca. Como a lei
que comanda os destinos da humanidade determina que os detentores de capital
devem crescer sempre, há busca incessante de consumidores. Isso dá no aumento
da velocidade da produção, com uso cada vez mais intenso de tecnologias, e num
consumismo que beira o absurdo. A lei da obsolescência, por um lado, leva as
grandes empresas ofertarem produtos que devem ser substituídos em prazos cada
vez menores, e o marketing, por outro, envolve os consumidores a sentirem-se
forçados emocionalmente a estar na moda. O resultado desse processo é o aumento
da quantidade de lixo, de mercadorias ainda em condições de uso, criando uma
civilização do desperdício.
A outra face desse processo é a busca de bens naturais
necessários. O que já caracterizou a colonização de povos e nações desde o
século XVI, e de modo especial a que submeteu a África aos países da Europa no
século XIX, nas últimas décadas foi mantido através de guerras de diferentes
tipos. A última é a da guerra de baixa intensidade, usando os meios possíveis
para manter países na órbita de um dos grupos hegemônicos. O confronto mais
importante na atualidade se dá entre os Estados Unidos da América do Norte e a
China. Como a China vai crescendo seu poder através do uso de seus recursos
financeiros, como se percebe, por exemplo, no projeto Rota da Seda e no
financiamento de infraestrutura na África e na América do Sul, os Estados
Unidos estão fazendo tudo que podem para retomar sua dominação sobre o que
sempre considerou seu quintal, as Américas do Sul e Central.
Para esta reflexão, vale destacar que isso significa uma
ameaça cada vez maior à vida do e no Planeta. De onde virão os bens naturais
necessários para as grandes obras da Rota de Seda e para a expansão comercial
que ela provocará? E para que os Estados Unidos mantenham e aprofundem seu
império mundial, até mesmo na produção e consumo de mais armas, de onde virão
os bens naturais necessários?
É nesse contexto de disputa por bens naturais, considerados
recursos indispensáveis pelos que dominam o mercado mundial, que se pode
compreender o que está acontecendo na Amazônia. Destacaremos três grupos, cada
um com olhar específico.
1. Os caçadores de
recursos
São grandes empresas transnacionais e nacionais que colocam
em prática o seguinte princípio: se descobrimos mais recursos, devem ser
retirados para serem transformados em novos produtos, em nova riqueza. E se já
não há ou não são suficientes os retirados em seus territórios de origem, é
preciso que os territórios em que há muitos recursos sejam liberados para
exploração.
É isso que nos ajuda a compreender o que está acontecendo na
África, América do Sul e de modo muito especial, na Amazônia. Os bens naturais
preservados pelos povos amazônidas se tornam motivo de cobiça internacional. A
água, a floresta, os minérios, a biodiversidade estão no centro da disputa
pelos bens naturais que restam.
É impressionante o que está acontecendo nos países da
América do Sul: todos estão sendo envolvidos pela proposta de serem
exportadores de commodities, de modo especial minérios e produtos agrícolas. E
é por isso que a Amazônia está ameaçada pelo crescente número de mineradoras e
pelo agronegócio, já que ele se apresenta como necessitado de mais e mais áreas
para expandir a produção de carnes e grãos para exportação. Junto com elas e a
seu serviço, entram as empresas de produção de hidroeletricidade, de rodovias,
de portos, de ferrovias.
O poder dessas empresas cresce na medida em que os governos
as promovem como pontas de lança do denominado desenvolvimento nacional. Com
todo tipo de incentivos e regalias, sentem-se fortes para impor suas escolhas,
e o fazem sem levar em conta a legislação ambiental e os direitos dos povos da
região. Na verdade, o governo atual, que ajudaram a eleger, está retirando
recursos destinados às políticas de proteção ambiental e apoia a liberação de
áreas de preservação, parques nacionais e territórios indígenas aos interesses
da mineração.
De toda forma, para garantir seus negócios e demais
interesses, o agronegócio e a mineração têm garantido, nas últimas eleições, um
número expressivo de parlamentares, com o objetivo de dar legalidade aos seus
interesses através da aprovação de leis e mudanças constitucionais.
2. Os defensores da
vida
Este grupo é formado pelos povos indígenas da Amazônia. Para
eles, a existência da floresta tem a ver com sua própria existência. Na
verdade, não só a floresta, mas tudo que a Terra, considerada mãe da vida,
criou para seus povos. A água, os rios e córregos, a biodiversidade, o sol,
tudo faz parte de sua vida. Ou melhor, eles é que fazem parte dessa vida, que
existe muito antes deles.
São povos que convivem porque são parte do conjunto dos
seres vivos e de tudo que constitui seu ambiente de vida. É tão profunda essa
convivência que toma a forma de respeito pelos espíritos presentes em cada ser.
Por isso, o cuidado com todos os seres é base de seu modo de vida. Se precisam
de peixes, vão pescar, mas pedem aos espíritos presentes nas águas e nos
próprios peixes que os perdoem por agir dessa forma. Da mesma forma, dialogam
com os espíritos da floresta e das árvores toda vez que precisam ampliar seu
espaço para moradia ou para a formação de roças.
Da mesma forma, cuidam de tudo que constitui o ambiente
vital da Amazônia as comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais,
cada uma com suas culturas e formas de vida.
O fato é que estes povos vivem neste bioma há milênios sem
destruí-lo, como já aconteceu com outros biomas do país. E é por isso que,
reagindo às ameaças das grandes empresas, no Brasil e nos países vizinhos,
estes povos defendem uma proposta de vida em sociedade que denominam Bem Viver.
Trata-se de um sistema de vida fundado em relações de cooperação comunitária
entre as pessoas e em relações harmoniosas com tudo que constitui o bioma, o
berço vivo e fonte de vida que receberam da Mãe Terra e do Espírito presente em
toda a criação.
3. Os que querem
controlar e usar os bens comuns
Esse terceiro grupo olha para a Amazônia com um olhar
aparentemente “ecológico”. São grupos de capital financeiro que, em nome da
preservação do que os povos amazônicos preservaram, e do que foi conquistado
com muita luta como áreas e parques de proteção ambiental, se apresentam para
assumir a responsabilidade de impedir que sejam destruídos, e para isso
negociam contratos de cessão de direitos com povos indígenas, quilombolas e
outras comunidades tradicionais, bem como com os entes públicos responsáveis pelas
áreas de preservação, em troca de dinheiro. Uma vez aceito e assinado o
contrato, a gestão destas áreas passa para as mãos do grupo que pagou, e os
povos ou o Estado perdem a liberdade de uso de seus territórios.
No caso dos povos amazônicos, deverão organizar a sua vida
com o uso dos dólares que receberam. Em outras palavras, passarão para uma
economia monetária, comprando no mercado o necessário para sua vida, perdendo
sua relação com a vida da qual são parte. Com isso, povos antes distantes do
mercado, passarão a ser parte dele.
Por outro lado, tudo que constitui a área preservada e agora
cedida ao grupo econômico, passa a ter “valor econômico”. Na verdade, antes da
assinatura desses contratos de REDD ou de Pagamento por Serviços Ambientais, já
é feita pesquisa para definir o valor econômico desses que até o momento eram
bens comuns: a floresta, a água, os
córregos e rios, a biodiversidade, as belas paisagens, a quantidade de carbono
que a floresta absorve da atmosfera para sua alimentação...
Esse é o processo final de financeirização da natureza. Sob
o controle do capital financeiro, os bens comuns e tudo que eles significam
para a existência e reprodução da vida passa a ser parte de um novo mercado
especulativo: os “títulos de carbono” passarão a ser negociados em bolsa,
ampliando a já absurda especulação financeira que domina a economia mundial.
Conclusão
De fato, a Amazônia é uma das áreas do planeta Terra que
está sendo atacada pela disputa por bens naturais por parte das empresas e
bancos que desejam manter em expansão a economia capitalista neoliberal de
mercado.
Quem já está e pode ser afetado por esse processo de
exploração e de financeirização? É claro que os primeiros afetados são os povos
indígenas e comunidades tradicionais do bioma. Eles perderão não apenas seus
territórios, sua liberdade de relação com os seres vivos que o constituem.
Perderão a sua cultura. Morrerão, e essa perda fará falta para a construção de
alternativas.
Mas perderá a própria natureza da Amazônia, diminuindo ou
perdendo sua capacidade de uma bomba de água que garante chuvas na região e em
todo o país, de modo especial no Sudeste e Centro Oeste. Perde o equilíbrio
climático criado pela Terra. E como isso aumentará ainda mais rapidamente o
aquecimento do Planeta, todos os seres vivos, e em primeiro lugar os humanos,
terão dificuldades cada vez maiores para sobreviver. Os seres humanos, criados
como inteligência da Terra, comprovarão que, comandados por grupos que se
deixaram escravizar pelo desejo de riqueza sem fim, podem tornar-se os
destruidores da Casa Comum.
Por isso tudo, e sempre apostando, com esperança, que
consigamos mudar de rota, de converter-nos para uma ecologia integral, deve ser
saudado como iniciativa muito importante o Sínodo para a Amazônia, convocado pelo
Papa Francisco para outubro próximo. Como se sabe pela sua carta encíclica
Laudato Si, sobre o Cuidado com a Casa Comum, ele convoca a Igreja de Jesus e a
toda a humanidade a rever sua forma de vida, a assumir uma vida mais simples e
de convivência com os pobres e com o ambiente vital. Este Sínodo se propõe
rever e a redefinir a presença e atuação da Igreja na Amazônia.
Na mesma perspectiva, são muito importantes as iniciativas
da Diocese de São José dos Campos para entrar em comunhão com este Sínodo,
buscando apoiá-lo e, ao mesmo tempo, assumi-lo como mais uma oportunidade para
renovar a sua presença e atuação na região.
Ivo Poletto
– assessor nacional e membro do Grupo Executivo do Fórum Mudanças Climáticas e
Justiça Social – FMCJS.
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